domingo, março 30, 2008

II - Etapa 7

A MINHA PRIMEIRA VOLTA AO ALENTEJO
OU A FORÇA
DO CHAMAMENTO DO SANGUE

Lembro-me como se tivesse sido ontem.
Tendo entrado para os quadros da extinta A CAPITAL em 1991 e logo atirado para a fogueira – o que é (era) normal fazer com os caloiros –, mandado para a estrada a cobrir provas de Ciclismo numa altura em que estava completamente a leste da modalidade, foi preciso esperar até 1995 para me estrear na cobertura da Alentejana.

N’A CAPITAL o calendário velocipédico resumia-se à Volta, ao Troféu Joaquim Agostinho – porque se desenrolava na região da Grande Lisboa e não acarretava despesas-extra para o jornal (que pagava pernoitas, mesmo em serviços internos, desde que implicasse não vir dormir a casa) – e ao Grande Prémio de Lisboa, organizado pela Associação de Ciclismo de Lisboa e depois pela própria A CAPITAL, que passou a dar-lhe o nome.

Durante quatro anos foi assim, embora eu tivesse tentado convencer a direcção do jornal que a Volta ao Alentejo era uma prova importante.
Até porque fora ganha por vários corredores que ganharam, também, a Volta a Portugal.

As equipas apresentavam-se sempre no seu máximo de força – o que nem sempre acontecia, e continua a acontecer com o Joaquim Agostinho dada a proximidade da corrida de Torres Vedras com a Volta – e eu já ouvira falar do mui especial élan que envolvia a Alentejana.

Só em 1995, portanto, me estreei na Volta ao Alentejo por especial insistência do então meu chefe de Secção, o Zé Manel Delgado. E não tenho dúvidas de que, porque na altura o Delgado era comentador da Rádio Comercial, trabalhando amiúde com o Fernando Emílio, um dos principais relatores da estação da Sampaio e Pina, alentejano e com forte ligação ao Ciclismo, este teve um papel decisivo no convencimento do Zé Manel Delgado em me enviar para o Alentejo.

Lembro-me como se tivesse sido ontem.
“Consegues desenrascar-te sozinho?”, perguntou-me o Delgado, explicando: “É que se não… não tenho argumentos para convencer a chefia.”
Como, depois dessa experiência, voltei a fazer milhentas vezes, respondi primeiro que sim, e só depois lá me desenrasquei.

O trato não era passível de discussão. Era pegar ou largar.
Ia comigo um fotojornalista – que conduziria o carro porque eu não tinha (nem tenho) carta de condução –, aproveitava-se o facto de a primeira etapa ser corrida em circuito, com várias passagens pela meta, em Beja, para ele queimar dois ou três rolos (ainda eram rolos) de fotos que depois serviriam para ilustrar o resto das etapas e regressaria a Lisboa no mesmo dia.
A corrida terminaria no domingo seguinte, em Évora, e então apareceria alguém para me recolher.

O engraçado é que, se tivesse esperado por isso, ainda agora estava em Évora!
Não apareceu ninguém.

Em relação ao trabalho do meu queridíssimo Carlos Alberto, o repórter-fotográfico que foi comigo até Beja, acabou por valer já que o vencedor da etapa, o russo Asiate Saitov, da Artiach, haveria de manter a camisola amarela até ao último dia, safámo-nos.

Quanto a mim, também resolvi atempadamente o meu problema…
Calhou que o enviado do Record fosse o António Barros, que trabalhara nos quatro anos anteriores comigo, n’A CAPITAL.

Ele já me tinha acompanhado numa etapa de um anterior GP A CAPITAL, e era essa a sua única experiência na modalidade; enquanto eu nunca mais deixara de fazer Ciclismo e, com quatro anos de estrada (aquela que se fazia no jornal), estava em plena fase de aprendizagem.

Cultivando – e não é imodéstia, hony soit qui mal y pense – o meu habitual low-profile. Vendo e ouvindo tudo o que pudesse; falando o menos a que pudesse ser obrigado.

O Barros partira de Lisboa com todos os hotéis marcados, sem preocupações. Eu, ao fim do dia pedia-lhe que me desse o número do telefone em que ele iria ficar no dia seguinte e então telefonava a tentar marcar um quarto. O que, curiosamente, só por duas vezes não consegui.

Na etapa que terminou no alto da Senhora da Penha, em Castelo de Vide, o Record marcara quarto na Pousada de Santa Maria, na linda vila de Marvão. Havia lugar para mim, quando telefonei, mas o preço da dormida era demasiado cara para o dinheiro que eu levava, com o juramento de que chegaria e não ultrapassaria os gastos previstos.

Acabei por ficar no Sol e Serra, em Castelo de Vide. E, para não obrigar o Barros a ter de me ir buscar no dia seguinte, que era um sábado, dia de folga n’A CAPITAL que não se publicava ao domingo, aproveitei para viver uma das poucas experiências que – malgrado ter chegado há tão pouco tempo ao Ciclismo – me faltava.
E fiz e etapa no Carro Vassoura, conduzido por esse homem de coração puro que é o Joaquim Ezequiel. Não sei nada dele nos últimos dois anos, mas espero, sinceramente, que esteja bem de saúde.

Mas voltemos um pouco atrás.
A Volta ao Alentejo, nessa época, era mesmo uma corrida impar. Tal qual mo haviam contado.
No final do dia, depois de cada um ter terminado o seu trabalho – os jornalistas o de descrever os acontecimentos; o pessoal da organização o de desmontar todo o circo que envolve uma corrida de Ciclismo -, todos nos juntávamos à mesma mesa.

A Volta ao Alentejo é organizada pela Associação dos Municípios do Distrito de Évora, mas sempre contou com o apoio de outros municípios alentejanos e cada um deles fazia questão de juntar à mesma mesa, ao fim do dia, toda a gente, independentemente da sua condição.

Foi este o grande segredo da Organização da Alentejana durante anos.
Mesmo naquele ano em que o jantar (e a corrida tinha sete dias então) foi sempre ensopado de borrego!



E depois do jantar, vinha o convívio tendo como música de fundo o triste, sentido cante alentejano que, em versos simples, conta pequenas histórias da vida sofrida dos Homens e Mulheres que trabalharam durante séculos de Sol a Sol practicamente apenas por um pão e um pedaço de toucinho.

E depois há aquela força, seja do sangue, seja daqueles chãos secos onde, em Maio o ondular das searas já douradas faz lembrar as ondas do mar. Mar que eu só vi pela primeira vez aos 11 anos.


E, quando já pensava que era mais lisboeta que Alentejano, a descoberta que quando se nasce Alentejano é-se Alentejano para sempre na não explicável experiência de sentir os olhos molhados e um aperto na garganta ao ouvir as melodias marcadas, os versos tristes onde, ao mesmo tempo, se reconhece que não há esperança mas se percebe a promessa de ficar e lutar até ao fim.



Lembro-me como se tivesse sido ontem...

1 comentário:

Pedro disse...

amigo manel...

só para agradecer a menção elogiosa e acrescentar um detalhe que certamente o deixará satisfeito:

o sr. ezequiel continua a gozar de saúde invejável e acima de tudo de uma notável sanidade. Ainda nesta volta ao distrito de santarém era vê-lo satisfeito nas suas funções que cumpre como ninguém (digo eu).

arrisco-me a dizer que ele está cada vez melhor