domingo, abril 22, 2007

474.ª etapa


"BRINCADEIRAS" COM O FOGO
PODEM CHAMUSCAR O CICLISMO

Facto: nove meses depois da chegada aos Campos Elísios, no final do Tour de 2006, a organização da maior corrida por etapas do Mundo ainda não entregou o prémio ao seu vencedor;

Facto: apanhado na rede dos controlos anti-doping – nos quais, cegamente toda a gente acredita –, o estadunidense Floyd Landis que, afinal, já foi consagrado no cenário habitual, com o Arco do Triunfo a servir como fundo, como ganhador da corrida, recorrendo à Justiça comum, conseguiu adiar a sua punição até hoje; isto é… ainda há a possibilidade de, mesmo depois do seu julgamento público, vir mesmo a ter o seu nome na lista dos vencedores da corrida;

Facto: no fim de uma acção mediatizada, a Justiça comum espanhola foi obrigada a, mesmo que nunca o tenha reconhecido, meter a Operação Puerto no saco depois de não ter conseguido materializar nem uma única acusação.

É verdade que esta operação produziu alguns efeitos, como o afastamento de Manolo Saíz, de Vicente Belda e Ignácio Labarta; o afastamento de um patrocinador forte, como a Liberty Seguros e o recuo do governo regional da Comunidade Valenciana que suportava uma equipa profissional que levava, exactamente, o nome daquela região autonómica espanhola; é verdade que no meio disto tudo, Jan Ullrich – apertado pelas autoridades desportivas e judiciais da Alemanha – pôs fim à sua carreira mas…

… mas a montanha pariu um rato.

À luz das legislações europeias, mesmo as mais avançadas, complementadas pelos regulamentos desportivos das várias federações nacionais, da União Ciclista Internacional e mesmo da Agência Mundial Anti-doping, as provas (?) recolhidas pelas autoridades policiais não são passíveis de virem a ser aproveitadas pelas autoridades desportivas e, desportivamente, nenhum corredor, ou qualquer outro agente desportivo, foi – porque o não podia ser – penalizado. O afastamento dos nomes que atrás referi ficou a dever-se unicamente ao facto de, mais ou menos queimados, nenhuma formação ter sequer tentado tê-los (pelo menos às claras) nos seus quadros. Legalmente, nada os impedia de estarem agora à frente de uma qualquer equipa.

Eu não pretendo aqui dizer que são uns santinhos e que, hoje, não passam de uns injustiçados. Primeiro porque não acredito em santos; depois porque a verdade é que não há fumo sem fogo. A questão é apenas esta: não vale a pena abanar ou soprar desesperadamente para dissipar o fumo se todos sabemos que o fogo, ainda que meio mortiço, continua a arder. Mas nenhuma autoridade competente para esse efeito, foi capaz de demonstrar que tenha havido… que ainda haja, qualquer tipo de… fogo. E bem que os bombeiros de serviço podem tocar todas as sirenes que, oficialmente… não há fogo nenhum.

Contudo, e no meio de tudo isto, tinha que haver quem saísse queimado. Sim, mesmo que nunca tenha sido provado que tivesse existido qualquer fogo. E, como sempre acontece, os queimados foram os corredores cujos nomes, mesmo que a Operação Puerto tenha dado em nada, ainda assim viram, clara ou veladamente, os seus nomes na praça pública.

Aqui deixo outra nota pessoal: não sou tão ingénuo o quanto posso parecer e admito, sem problemas de maior, que nesta intricada história não há ninguém cem por cento inocente. Mas já que as coisas têm que ter um suporte legal, seja jurídico ou desportivo, não posso deixar de lembrar, uma vez mais, que, oficialmente… não há culpados.

Não há? Pois bem, para a organização do Tour parece que, se não há… inventam-se e o senhor Christian Prudhomme, mesmo não tendo qualquer suporte concreto a que se agarrar, avisa que os corredores cujos nomes apareceram na praça pública, como envolvidos na Operação Puerto serão considerados como “não bem vindos” no seu próximo pelotão.

O que poderá então acontecer? Será que, apesar de nunca acusados – muito menos penalizados – pelas autoridades desportivas com poderes para isso, ainda assim, na hora da entrega dos dorsais, a organização francesa vai começar, por sua conta e risco, a riscar nomes? Aliás, como já fez na edição do ano passado quando, por exemplo, impediu o Alexandre Vinokourov (e o nosso Sérgio Paulinho, também) de alinharem à partida?

E a isto o que se seguirá? Vetam-se – porque sim – todos os corredores cujo nome começa por Xis? Todas as equipas cujos equipamentos sejam às bolinhas? Todos os directores-desportivos que, no penteado, usem risco ao meio?

É que, como as coisas se me apresentam neste momento, já tudo me parece possível. Se as organizações podem vetar quem muito bem lhes apetece, se os parâmetros da sua escolha aparentemente não têm limites, tudo pode, de facto, acontecer.

Ponha-mo-nos na pele dos patrocinadores das equipas.
É evidente que a Operação Puerto deixou todos de pé atrás mas… se ela não teve consequência alguma, em termos desportivos, se a esmagadora maioria continuou a investir no Ciclismo, como é que encararão o acto discriminatório em relação a alguns corredores que a organização do Tour ameaça levar a cabo? E, um pouco mais abaixo, na cadeia lógica da organização das equipas, que farão os directores-desportivos? Abdicam de corredores que seriam, à partida, indispensáveis nas suas estratégias? Ou levam-nos a França, apesar de tudo?

E essa coisa, meio esquecida – ignorada mesmo – que, no Direito Europeu consagra o direito ao trabalho de qualquer trabalhador. E os Corredores não são, não podem ser, excepção?

Arriscará a organização do Tour sair com a corrida para a estrada tendo de enfrentar uma provável providência cautelar pedida pelos vetados e levantada por qualquer tribunal?

Para mim, está a brincar-se com o fogo e, de certeza que é o Ciclismo a sair chamuscado de mais esta brincadeira.

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