terça-feira, junho 27, 2006

126.ª etapa




PÁREM DE FALAR EM «DOPING»



Nas últimas semanas todos nós, os que adoptámos o Ciclismo como a nossa modalidade preferida, vimos a reagir de uma forma, digamos, muito pouco lúcida, em relação às notícias que, em catadupa, nos chegam das mais diferentes proveniências.

E, ao contrário dos pais que, por norma, e muito por instinto também, se apressam a defender os filhos, acolhendo-os no abrigo dos seus braços, o que é que tenho observado? À mais simplista – no sentido de desresponsabilização individual (nem que seja apenas o reflexo de um acto puramente pavloviano) - das formas de encarar os factos. Estamos perante um escândalo, disso não restam dúvidas, mas tratar o que está a acontecer como um simples caso de doping, ou casos de doping, porque a Operação Puerto, e é disso que estou a falar, envolve, disso já estamos seguros, um número elevado de corredores e outras pessoas que gravitam à volta do ciclismo, isso tem de parar porque não faz sentido.

É o primeiro erro.

Não se está a trabalhar num, colectivizemos então, não se estão a tratar de casos de doping e as primeiras notícias, se lidas com a atenção merecida, até nem deixaram de ser claras.
À luz das legislações – e elas são todas muito parecidas – da maioria dos países europeus, e demais, do chamado primeiro mundo, o acto de se recorrer a substâncias que eventualmente possam melhorar prestações desportivas não está enquadrado em nenhuma Lei. As autoridades não podem investigar, perseguir, muito menos deter quem, eventualmente, recorra a estes métodos.
Depois há, algumas delas reconhecidas internacionalmente e com um peso específico bastante relevante, outras entidades que, essas sim, podem sancionar o uso de produtos – que elas mesmas indexaram – ou punir práticas que, segundo a mesma
“tábua” de regras, sejam passíveis de cair sob da sua alçada.

Falo da AMA (Associação Mundial Anti-dopagem) ou dos diversos departamentos nacionais (referindo-me a cada uma das nações) cuja missão é, exactamente, a luta contra a
“batota” no desporto. De uma maneira geral.

É alguma destas autoridades que, em Espanha, está neste momento a actuar? Não! Porque não têm por onde pegar. Na verdade, um atleta só cai sob a sua alçada SE for apanhado num dos controlos que todas elas fazem regularmente.

O que está a acontecer em Espanha (e já aconteceu em França, em 1998, e em Itália) é que são, de facto, as autoridades policiais, devidamente escudadas pelas autoridades judiciais, que desenvolvem uma operação – isto nunca foi focado, porque se presume, à partida, que a maioria das pessoas o sabem – que visa, espantem-se agora, presumíveis atentados contra… a saúde pública. Sendo que qualquer atleta, seja de que modalidade for, é, antes disso, um cidadão.

Estamos, e não vi isso escrito em lado nenhum, perante uma operação que pretende desmantelar uma presumível rede que, de modo contínuo ou não, à luz das Leis gerais de qualquer estado, se entrega a práticas que, no seu acto mais simples, pode atentar contra a saúde pública.
Aqui, onde as autoridades desportivas não podem chegar, é campo onde podem e devem movimentar-se as autoridades policiais e judiciais de qualquer país.

Fazer transfusões de sangue, seja ele exógeno ou endógeno, passou a ser proibido pelas autoridades desportivas, mas estas só podem actuar quando conseguem provar que alguém o fez. Retirar sangue a uma pessoa, manuseá-lo e voltar a introduzi-lo numa pessoa, se se tratar de um acto reconhecidamente e apenas clínico, é aceite pela comunidade médica e não foge um milimetro a seja que Lei for.

Agora, tirar sangue, manuseá-lo e armazená-lo em locais que não hospitais ou outros estabelecimentos reconhecidos como tendo essa vocação; fazer transfusões – ou mesmo apenas retirar sangue – num quarto de um hotel, armazená-lo e vendê-lo à embalagem, isso, fugindo às regulamentações desportivas cai, sem apelo nem agravo, sob a alçada das autoridades sanitárias que podem, e fizeram-no, pedir às polícias que, sob o mandado de um juiz, interfiram. Identifiquem e punam os prevaricadores.

Resume-se a isto a Operação Puerto. De certeza que, judicialmente, nenhum corredor pode vir a ser punido. Por isso as atenções das polícias se viram para quem, mesmo sendo médico, assiste a estas transfusões – ilícitas, porque não observam as regras gerais de saúde pública – e sobre quem, seja sob que pretexto for… as negoceia. Sendo vendendo ou comprando.

Falar de doping neste caso, neste, em particular, é de um despudorado desconhecimento das coisas.

Agora… Se quem compra esse sangue é um elemento de uma equipa desportiva – seja de ciclismo ou não -, é evidente que mete em alerta as autoridades que tentam zelar pela verdade desportiva. E o que podem fazer? Nada.

Nada a não ser que, mesmo que isso possa significar
“esticar” um pouco a sua investigação, levando-a além daquilo a que seria, para o seu propósito, suficiente, as autoridades policiais façam o que se fez em Itália ainda não há muitos anos e, revistando os hotéis onde estão instaladas equipas, venham a encontrar provas de que – neste caso – o tal sangue comprado foi mesmo utilizado.

Eu não tenho formação jurídica, mas o pouco que sei dá para adiantar o seguinte:
Em Itália, quando a polícia revistou os hotéis das equipas – e para isso é preciso um mandado judicial – isso só poderia ter sido feito sob a justificação de se juntarem provas de forma a chegar-se a… uma eventual rede que atentava, repito, segundo a Lei geral, contra a saúde pública.

Não sei o que os franceses poderão fazer na próxima semana, ou já no final desta… mas em Espanha as polícias dificilmente conseguirão o acordo de um juiz para vasculharem no seio das equipas porque inverteram a operação apontando logo para a “cabeça” do “polvo”. E se conseguirem ligar os “pseudónimos” anotados nos documentos que apreenderam a ciclistas em concreto, apenas os podem expor à opinião pública.

As autoridades policiais não podem arrestar ninguém por ser apanhada a fazer uma transfusão e as autoridades desportivas, se os não apanharem em flagrante, ou através de resultados positivos em qualquer uma análise, mesmo que saibam os seus nomes nada podem fazer.

Portanto, condensando, o que aconteceu em Espanha foi uma operação em defesa da saúde pública. Nada teve a ver com as autoridades desportivas e estas ficaram na mesma. Bem podem os jornais publicar até o nome completo, o número do BI e o n.º de Contribuinte dos corredores que quiserem.

Desportivamente, se não forem apanhados nos controlos das entidades da luta anti-doping… vai acontecer: NADA!

Porque é que, então, a Organização do Tour tomou a atitude que tomou em relação à Astaná-Wurth? Ora bem, porque as empresas proprietárias das licenças desportivas das equipas ProTour assinaram uma certa Carta Ética!... E Manolo Sáiz, provavelmente um dos seus redactores, deixou-se apanhar…

Em relação à Comunitat Valenciana… ninguém, a não ser que algum atleta seja apanhado – e nesse caso SÓ esse atleta será castigado -, pode mexer-lhe nem com um dedo.

Diz-se que à mulher de César se lhe pedia que, mais do que ser séria deveria parecê-lo. Foi o que as empresas detentoras das licenças ProTour fizeram. Para
“parecerem” sérias assinaram uma Carta de Ética… e foi a pontinha solta por onde a Organização do Tour pode pegar. E tem toda a razão do seu lado, não acredito que abra mão de não querer a equipa espanhola no seu pelotão. Até porque a “guerra” entre as 3 Grandes e a UCI e o ProTour apenas vive uma trégua. Não acabou.

2 comentários:

José Carlos Gomes disse...

MZMadeira, não podia estar mais em desacordo consigo:

«Falar de doping neste caso, neste, em particular, é de um despudorado desconhecimento das coisas»

Dizer que este caso nada tem a ver com doping é tapar o sol com uma peneira. Uma coisa são os termos técnicos da lei, outra é a interpretação que é lícito dar-lhe. E a "Operação Porto", quer queiramos quer não, é uma investida da Justiça contra práticas ilegais, entre as quais as transfusões sanguíneas e a prescrição de substâncias químicas, algumas delas ilegais em Espanha, e todas elas consideradas como doping. Mesmo pegando apenas na parte relativa às transfusões sanguíneas, é um preciosismo legal e linguístico não as classificar como doping. Aliás, de acordo com a Agência Mundial Antidopagem por doping entende-se tudo o que viola as regras antidoping e as transfusões violam-nas.

Ao contrário do MZMadeira, não me parece relevante saber se a lei desportiva e civil tem por onde pegar e como castigar os ciclistas que forem apanhados na operação. A mim interessa-me é que se desmonte esta rede de dopagem e que se divulgue o nome de todos os implicados, desde os mais culpados, onde se encontram os médicos e os directores desportivos, até aos ciclistas, que nuns casos serão vítimas, mas que noutros sabiam muito bem o que queriam. Ou seja, para mim valerá tanto a censura pública como uma condenação judicial. Explicando melhor: caso seja provado que Jan Ullrich (é só um exemplo) usou realmente dos esquemas fraudulentos alegadamente montados, chega-me essa prova e a respectiva condenação pela opinião pública.

É óbvio que uma eventual suspensão desportiva seria o mais justo, mas pode nem ser preciso. O caso em investigação em Espanha tem tal amplitude que, por uma questão de imagem, não duvido que, de futuro, haverá um boicote aos envolvidos. E que mesmo os corredores que não podendo ser castigados pela justiça civil e desportiva acabem por pagar com o desemprego aquilo em que se meteram e/ou em que foram metidos.

mzmadeira disse...

Ok, José Carlos

até sou capaz de concordar contigo. Na verdade e na sua essência, estamos a falar de produtos e métodos proíbidos mas onde eu pretendia chegar era mesmo ao facto de, disto tudo dificilmente poder vir a sair alguma penalização desportiva.

Fala-se em doping e pensa-se em alguém apanhado num controlo. Aí, sim, será castigado desportivamente.

Tenho lido o que encontro na imprensa espanhola e a leitura que disso extraio é aquela que expus.

Veio-me à memória um filme que já vira há alguns anos e que revi este fim de semana na TV. Mississipi em Chamas, não sei se viste. Quando o FBI chegou à conclusão de que era impossível prender aquele bando do KKK por homicidio, crime estadual e não federal, apanharam-nos por atentado contra os Direitos Humanos.

Mal comparado, é o que a Guardia Civil fez. Sem jurisdição no campo desportivo, lançou a rede e apanhou aquela meia dúzia de figuras enquadrando o ilícito no atentado contra a Saúde Pública. Fui levado por aí.

No resto tens toda a razão, mas se já se podem identificar alguns nomes de ciclistas, a verdade é que contra eles, se não forem apanhados num controlo nada poderá ser feito.

E todos sabemos o quanto este aspecto é cuidado. Com a excepção da equipa do Manolo Sáiz que o ano passado conseguiu ver dois homens afastados da corrida - ainda assim, sem que se possa dizer que estavam dopados - e depois o Heras, esse sem hipóteses de fuga. Mas por esta altura já devem ter calibrado a maquinazinha de medir o hematócrito.

Já agora, permite-me acrescentar uma coisa.

(Tantas vezes eu fui mal interpretado quando tentei esclarecer um ou outro ponto e o mínimo que me chamaram foi... ter a mania de ser "sabichão")

Em espanhol, "puerto" tem dois significados (pelo menos): o de porto, no sentido de porto de mar, de pesca... no léxico do ciclismo "puerto" significa montanha. Creio que será este o verdadeiro código da operação, mas como em português Operação Montanha não faz muito sentido, se calhar devemos manter a palavra espanhola, evitando traduzi-la para "porto". Já reparaste que Operação Porto fica um pouco "deslocada" neste caso?

Um abraço... e desculpa lá esta parte final.