TERÁ MESMO ACONTECIDO O QUE SE DIZ QUE ACONTECEU?
E o que é que aconteceu então nessa tarde em que nem uma ténue brisa soprava e calor era de fazer derreter o alcatrão, quando da derradeira etapa da 22.ª edição da Alentejana, um crono de 25,3 quilómetros com partida do centro do Redondo, junto aos Paços do Concelho, e chegada às instalações da ACR?
Aconteceu que um tal Hector Guerra, então com 25 anos e a representar a hispano-belga Relax-Bodysol, ganhou a etapa com menos 1.28 minutos que o segundo classificado, o boavisteiro Joaquim Sampaio. Guerra fez o tempo de 30.31 minutos para os 25,3 km, o que dava uma média incrível de 49,7 km/h (este ano, para um crono com mais seis quilómetros e com o último terço a correr com forte vendo de caras, fez uma média de 44,7).
Logo, assim que cortou a meta, deixando todos surpresos e a, rapidamente, terem de fazer contas em cima do joelho, houve três ou quatro vozes que se levantaram para gritar que era impossível fazer-se um tempo daqueles. Quem era aquele Hector Guerra que ninguém conhecia?
Já nessa altura a tradição de um vencedor por edição era um dos atractivos da corrida, mas, paralelamente, era sempre esperado com grande ansiedade o momento em que ela [a tradição] fosse quebrada e um dos favoritos à vitória final, em 2004, era Joaquim Andrade (então no Tavira) que havia ganho a 20.ª edição da corrida ao serviço do Cantanhede.
Fosse como fosse, e isso só se soube quando todos os corredores chegaram, o Quim não conseguiria fazer história pois, com o resultado que fez, ficaria em terceiro atrás de Guerra e do então também ainda muito jovem Danail Petrov (Carvalhelhos-Boavista).
Ficaria em terceiro, mas terminou em segundo e o vencedor foi mesmo o jovem búlgaro, hoje corredor do Benfica.
O que é que aconteceu então? Depois dos gritos – e podem estar certo que foram mesmo gritos, a par de cenas menos dignas a que fomos todos obrigados a assistir – de que era impossível fazer-se aquele tempo, começou-se a sussurrar que havia quem tinha ouvido quem tivesse dito que houve que visse que, primeiro, Hector Guerra teria sido ajudado pelo carro de apoio (provavelmente colocando-se ao abrigo este), depois apareceu quem tivesse ouvido dizer que alguém tinha fotografado o Hector a ser ajudado por um companheiro de equipa, no caso, Moisés Dueñas que, tendo partido antes dele, terá esperado para depois o rebocar.
Essa foto não apareceu na altura. Depois, a verdade é que a prova seria de difícil aceitação uma vez que uma fotografia prende um momento, um só momento. O que é que aconteceu antes? E depois do click? Quem tirou a foto foi testemunha, mas o seu testemunho também não seria válido, à luz dos regulamentos, para interferir na decisão do CC. Só uma prova seria válida: o testemunho in loco da infracção por parte de um comissário.
Como sabem, nos contra-relógios, para além dos comissários-moto que acompanham a corrida, seguindo um determinado corredor, mas sempre com a possibilidade de se deixar descair e indo esperando por mais dois ou três, controlando, assim, a verdade da corrida, a equipa de comissários divide-se ainda, em postos fixos de observação, ao longo do traçado.
Escolhem pontos estratégicos onde, à primeira olhadela não sejam imediatamente detectados. O que obriga os corredores e quem os acompanha no carro de apoio a resistirem a tentações pois nunca se sabe se, para lá daquela curva, lá à frente, ou atrás daquele pequeno aglomerado de árvores não está um comissário vigilante.
Como o mesmo carro de apoio faz o percurso diversas vezes, acompanhando corredores diferentes, os comissários apeados mudam (ou devem mudar) de poiso porque nas primeiras passagens podem ser identificados.
E foi aí que o CC – ou um comissário por iniciativa individual, levando o Colégio a aceitar o seu depoimento – chegou à conclusão que o corredor da Relax teria mesmo tido um comportamento anti-desportivo e resolveu penalizá-lo em 2.30 minutos o que deu para que Joaquim Sampaio (Boavista) fosse declarado vencedor da etapa, com dois segundos menos que David Plaza (Paredes), e que Danail Petrov (Boavista) fosse declarado vencedor da corrida, com menos quatro segundos que Joaquim Andrade.
Quem mais barulho fez, naqueles longos quarenta e tal minutos de discussão, foram, exactamente, elementos do clã Andrade e o professor José Santos, técnico dos axadrezados. E, claro, José Maria Perez, o DD da formação hispano-belga. Uma peixeirada à moda antiga que ensombrou o final da festa. Os prémios que a formação Relax tinha conquistado ao longo da prova ficaram no chão, junto ao pódio já que a equipa se retirou de imediato, com a jura de não mais voltar a Portugal.
Voltaria no ano seguinte e até tiveram a camisola amarela na Volta a Portugal, com José Miguel Elias que ganhou a primeira etapa, com meta em Castelo Branco.
Mas eu transcrevo aqui as palavras que Hector Guerra me disse, sentado – como escrevi – num degrau das escadas de acesso à porta principal da ACR, fazendo um esforço evidente para suster as lágrimas.
«Dizem que fiz uma corrida combinada com o meu colega de equipa. É falso. Depois penalizam-me na medida justa para não ganhar a volta [teria ganho por oito segundos, não fora a penalização]. No contra-relógio de Alcobendas fiquei 4 segundos atrás do Isidro Nozal [que no ano anterior tinha arrasado na Vuelta, tendo ganho os dois cronos e só perdendo a corrida para Roberto Heras, já nas últimas etapas, junto a Madrid, e sido quarto no mundial de contra-relógio, no Canadá] e no crono da Volta a Múrcia fui segundo a oito segundos do Armstrong e fiquei à frente do Ullrich.»
Pois é!... Mas ainda há mais. Acabei por vir a saber que o comissário que «viu» a irregularidade não a podia ter visto justamente porque não estava naquele posto de controlo. Talvez devesse estar, mas não estava (fazia muito calor, a convidar a uma bebida fresca, não é?!).
E é assim que, quatro anos passados, Hector Guerra é o 26.º vencedor da Alentejana que mantém a tradição de nunca ter tido um vencedor repetido.
Mas, por tudo o que ficou aqui escrito, Hector Guerra era o único corredor que não podia, nem ter ganho este ano, nem ganhar mais esta corrida… Porque, não se podendo reescrever a História, também não podemos ignorar que há, na História, episódios que a contrariam e nunca podem ser esquecidos.
(Nota.1: Publico aqui fotos, do António Costa, a que tive acesso; não sei, nunca soube, se foram estas fotos aquelas de que se falou naquela tarde, mas continuo a sustentar que uma foto, porque fixa apenas um momento, parando-o para sempre no tempo, só nos mostra exactamente esse momento. Vemos, de facto, os dois corredores muito juntos [o Guerra é o que vem atrás]. Mesmo quem tirou as fotos, só pode ter visto os corredores durante meia dúzia de segundos. O que é que elas mostram? Que um deles alcançou o outro, ou está a apanhá-lo. Depois seguem perto durante algum tempo? Certamente, enquanto o mais forte não descolar o ultrapassado. Também há regras para estas situações. O corredor que vai ser ultrapassado deve deixar livre a melhor trajectória para o que vem para passar por ele, e depois deve manter-se no lado oposto da estrada até que a distância entre os dois já seja significativa. Só um comissário-mota, porque pode acompanhar os corredores junto deles é que pode dizer que um foi na roda do outro durante mais tempo do que o necessário para o ultrapassar. Mesmo para o comissário fixo, os corredores passam á mesma velocidade que para o público, e não dá tempo para perceber se está a ver a ultrapassagem a acontecer naquele momento, ou se a situação se prolongará, para além daquilo que a sua vista alcança, isto se não desaparecerem imediatamente do seu campo de vista numa qualquer curva algumas dezenas de metros à frente.)
(Nota.2: É claro - e creio que esta nota nem seria necessária, mas, para evitar mal-entendidos cá vai -, é claro que nem o Joaquim Andrade, nem o Joaquim Sampaio, nem o Danail Petrov tiveram nada a ver com este episódio.)
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