terça-feira, julho 15, 2008

II - Etapa 143

MORREU O PROTOUR
VIVA O CICLISMO!

Mas quem é que, pretendendo ter uma visão real sobre tudo o que vem a passar-se no Ciclismo internacional terá, de facto, ficado surpreendido com a decisão saída da reunião de hoje, em França e aproveitando o dia de descanso no Tour, na qual todas as 17 equipas, por unanimidade, acordaram em abandonar já em 2009 o modelo ProTour da UCI?

Aliás, a reacção vinda de Aigle e assinada por Patrick McQuaid, tem tudo para ser confundida com... uma fuga em frente.
Em desespero.

O que a mim me causa confusão, isto porque creio ser o assunto tão linear que “qualquer criança de dez anos” entenderia à primeira, foi este descarrilamento da UCI, que aconteceu há quatro ou cinco anos atrás – levando algumas federações nacionais na roda –, fazendo-a esquecer que existe para supervisionar a modalidade, garantir que em todos os países se rejam pelos mesmos regulamentos e... mais nada!

Não é, nunca foi, não deverá nunca ser função, nem da UCI, nem das federações nacionais... mandarem nas equipas; mandarem nas organizações.
Eu sei quando e porque aconteceu essa súbita loucura.

Aconteceu quando em Aigle pensaram que podiam deitar a mão aos substanciais lucros, nomeadamente das principais organizações, as que montam as grandes corridas – as mesmas que a UCI se apressou a integrar no seu ProTour assim meio à sorrelfa –, e porque pensou que, recorde-se que o ProTour foi congeminado em conjunto com a Associação Internacional de Equipas Profissionais (pelo menos com o seu então presidente, o senhor Manuel Sáiz), tendo as equipas nas mão e desenhando um novo regulamento à medida, chegariam facilmente às organizações.

Erro infantil. E crasso.
Aconteceu numa altura em que o holandês Hein Verbrugghe já interiorizara o espírito de Luís XIV: “L’État c’est Moi.”
(E deixou herdeiros…)

O Tour gere quase tanto dinheiro como um Campeonato da Europa, em futebol. Fá-lo há muitos anos e, apesar de todas as turbulências que abanaram a modalidade, faz cada vez mais dinheiro. Porque é que iria dividir os seus lucros com a UCI, via-ProTour?

Ainda por cima quando a parte suja da coisa – leia-se, todo o trabalho de angariar sponsors, todo o trabalho de montar a corrida, todo o trabalho de a conduzir... – manter-se-ia função sua. E o que fazia a UCI? Acrescentava dois ou três dos seus patrocinadores institucionais, revertendo apenas para si o investimento destes, e amealhava ainda mais uns largos milhares de francos suíços sob a forma de... “licenças desportivas especiais” que as equipas ProTour são obrigadas a pagar, tendo como contrapartida, a certeza de que correrão as principais provas do calendário, porque as organizações seriam obrigadas a recebê-las.

Repararam no cinismo da coisa?
A UCI cria um Circuito com a elite das equipas que têm que pagar uma verba de inscrição extraordinária; depois, intromete-se como co-organizadora do Circuito, tendo como objectivo ficar com parte dos lucros das corridas que os outros já organizavam, em alguns casos, há mais de 100 anos; ainda “engana” alguns dos seus sponsors institucionais, que foram ocupar espaço que podia ser gerido pelas próprias organizações, mas as verbas investidas por estes vão direitinhos para uma das contas de Aigle…

Foi tanta trafulhice que a mim, sinceramente, o que me admirou foi que este ProTour tivesse durado tanto tempo...

Nasceu mal, de parto forçado, e as coisas nunca melhoraram de 2004 para cá, até ao braço-de-ferro de finais da última temporada, início desta com, principalmente, a ASO e a RCS.

Entretanto a ASO torna-se maioritária na sociedade que monta a Vuelta e fica com a faca e o queijo não mão.

Organiza e gere o terceiro maior evento desportivo a nível mundial – só batido pelos Jogos Olímpicos e pelos Mundiais de futebol -, pode ganhar o dinheiro que quiser e não o repartir com ninguém e ia, está mesmo a ver-se, aceitar uma situação como aquela descrita aqui há umas linhas atrás...

Mas a coisa estava de tal forma tão bem embrulhada que, nos primeiros anos, o embrulho ainda disfarçou a pobreza da prenda.
Mas não podia durar muito tempo.

Primeiro, mais o Giro – que também foi mais inflexível -, do que a Vuelta, mas depois também esta franziram o sobrolho. Mas a opinião da ASO teria sempre que ser tido em conta.
E os franceses, como toda a gente sabe, são cínicos. Indiscutivelmente a rainha das organizações ainda gozou de alguma margem de manobra e só quando achou que para brincadeira já chegava disse: Non!

E non, dito pela ASO é non mesmo.
E, apesar das ameaças (por parte da UCI, que sempre se quis fazer ouvir mas nunca ultrapassou a voz de falsete), assim que a ASO resolveu engrossar a sua própria voz, e fez as equipas ProTour correr o Paris-Nice, apesar de o ter retirado do calendário ProTour, e depois ter auto-despromovido o Tour ao nível de prova… nacional, do calendário francês, onde a UCI nem um cagagéssimo de cêntimo vai buscar, sentenciou o nado-morto, que foi este ProTour.

Eu sei que hoje em dia o ensino básico já não passa por tentar explicar coisas sérias através de estórias e que as parábolas são figura em via de extinção.
Perguntem a quem tem menos de 40 anos o que é uma parábola…

Contudo, eu ainda aprendi as primeiras lições de vida, de postura, em relação a ela, com as rudimentares estórias do Pedro e o Lobos, da Raposa e da Cegonha e, porque esta vem mesmo a propósito, da Galinha dos Ovos de Ouro.

A perdição da UCI, que de repente virou o Sapo Que Queria Ser Um Touro, foi não ter percebido que já ninguém ensina assim, que já ninguém aprende assim. E – outra vez bem a propósito – já não é tão verdade como o era há 40 anos atrás aquela treta do que… Em Terra De Cegos Quem Tem Um Olho É Rei.

A ASO este ano retirou as duas provas do calendário ProTour, a RCS fez o mesmo e o único ponto fraco parecia ser a principal organização espanhola. Só que a ASO acabou por comprar uma fatia da Unipublic que a torna maioritária no Conselho de Administração.

Estava fechado o cerco à UCI!
Que nunca soube estar neste processo.
Em vez de, de cada vez que via escapar-se-lhe por entre os dedos mais um pouco de poder de intervenção junto dos organizadores, dos principais organizadores, ter tentado, como se diz… dar-lhe um bocadinho de corda, fazendo-as pensar que conquistavam um pouco mais de raio de acção - como estas trelas modernas em que se deixa o cachorro galgar terreno, pensando que pode ir onde quer, para depois, num simples encostar do travão o fazer parar - escolheu sempre guinchar de forma histérica que retaliaria, que fazia e desfazia, que multava e levantava processos…

Ninguém, naquela estrutura enorme e pesada que constitui a UCI, percebeu que, às vezes, para se poder, sem grandes percalços, continuar a andar em frente, é preciso condescender e dar um ou dois passos atrás.
Se o tivessem percebido, talvez tivessem salvo este ProTour.
(Ainda bem que não o perceberam!)

Foram sempre tão assoberbadamente cegas as “respostas” vindas do interior da UCI que quase toda a gente percebeu o que era inevitável: na primeira tentativa de dar um passo em frente tropeçaria e se espalharia ao comprido.

E, como sempre acontece nestas situações… permitam-me usar outra frase feita: Foi Sempre Pior a Emenda que o Soneto.

Impotente para segurar as corridas da ASO e da RCS, a UCI “ameaçou” com a criação de outras “grandes” corridas, alargando o espaço físico natural onde o Ciclismo nasceu, cresceu e se tornou adulto. A Velha Europa.

Já este ano “inovou”, com a integração do Tour Down Under, na Austrália, e tem publicitado “grandes” corridas na Rússia e na... China!

Que viria a seguir? Uma em África? Uma na América do Sul?
E com esta ideia peregrina acabou por cometer suicídio.
Porquê? Por acaso já aqui o escrevi, no VeloLuso.

Que interesses poderão ter as equipas, maioritariamente da Europa Central e do Sul, em ir correr à Rússia, à Austrália... à China?
E os gastos que isso comportaria?
E depois?
E depois... que visibilidade teve, na Europa, o Tour Down Under?
Quem ganhou? Alguém se lembra assim de uma etapa... de qualquer coisa...
E a televisão, que hoje em dia é tão necessária ao Ciclismo que eu lhe chamaria... o seu “petróleo”?

E com as equipas “acorrentadas” ao ProTour, sendo obrigadas a cumprir o seu calendário e com a UCI a ameaçar colocar essas mesmas corridas nas mesmas datas das Três Grandes... que patrocinador avançaria com dinheiro para uma equipa ir correr a Volta à China quando todo o Mundo estava a ver pela televisão o... Tour?

Onde elas, essas equipas, estariam “proibidas” de correr…

A UCI perdeu o braço-de-ferro com as grandes organizações e agora vê-lhe fugir-lhe por entre os dedos, qual grãos de areia, as equipas.

Estas decidiram hoje que abdicam, já a partir da próxima época, do estatuto ProTour.
E como reage a UCI?

Ameaça – a quem falta argumentos sobram sempre ameaças – que poderá excluí-las dos seus quadros.

Olha, olha… e a Sociedade Comercial Abarca Sports, SA deve estar mesmo preocupada.
Nem sequer tem estatuto de grupo desportivo, é uma sociedade privada de gestão, neste caso, de uma equipa de Ciclismo.
Recusando-se a renovar os contratos – atenção!, são contratos de cariz comercial, embora envolvam uma componente desportiva na figura de equipa – as proprietárias das equipas (ainda) do ProTour saem absolutamente inatingíveis exactamente porque são Sociedades Comerciais e é com estas que a UCI tem contrato, não com as equipas que aquelas gerem.

Só para aproveitar o exemplo que dei, a UCI nada pode fazer contra a equipa Caisse d’Épargne e não pode porque esta não tem ligação absolutamente nenhuma com a UCI.

Quem a tem é a Sociedade Comercial Abarca Sports, SA e, como é bom de ver, o seu estatuto não se enquadra, nem pode ser atingido por regulamentos meramente desportivos.
Portanto a “ameaça” do senhor Patrick McQuaid soa a Canto do Cisne.

Adivinham o que acontecerá imediatamente a seguir?
Exacto, as equipas reunir-se-ão numa outra qualquer associação e a UCI ficará, definitivamente... sem nada.

Fica com o Ciclismo amador e de formação, mas como isto não dá para manter cartões de crédito ilimitado, da mesma forma que agora há uma dúzia de figuras que se desunha para se segurar ao poder, daqui a dois anos não vai haver ninguém que queira assumir a UCI.

Agora, e apesar de reconhecer já ir longo este artigo ainda acrescento: uma coisa é certa, quase todo o mal que a UCI podia ter feito ao Ciclismo… fê-lo nestes quatro anos.
Como? Ah, ainda perguntam…
Eu respondo.

Retirando as principais equipas do alcance da esmagadora maioria dos organizadores… precipitou o fim de corridas, algumas delas históricas; limitando a um grupo fechado aquelas que eram as equipas de Elite, desmotivou todas as outras que, antes da mal parida ideia ainda tinham um objectivo pelo qual lutar, pelo qual conseguir convencer patrocinadores, que era o sistema de sobe-e-desce de divisão.

Hoje, e ao contrário da maioria das opiniões que lerão daqui a algumas horas, não morreu o ProTour.
Não!
Já tinha morrido há algum tempo, fora foi mal enterrado.
Que se peçam contas aos seus coveiros.

E não termino sem deixar mais uma opinião contra-a corrente.

Todo este circo com a AMA, com os laboratórios nacionais, tudo o que de doping se soube, só se soube porque servia à UCI que houvesse estratégicas fugas de informação, e estas tinham um único e claro fim, recolher em segundo plano as suas próprias fragilidades.
Conseguiram-no.
Nunca, salvo o caso de 1998, com a Festina, tanto espaço – que deveria ser, por direito próprio, para o Ciclismo – foi ocupado nos noticiários por escândalos de doping.

E tentem perceber de onde é que, quase sempre, houve fuga de informação.
Seja o que fôr que as equipas estão a preparar, sendo-o em conjunto com as organizações nunca será pior do que foi nestes últimos quatro anos.

Morreu o ProTour.
Viva o Ciclismo!...

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