quarta-feira, agosto 23, 2006

216.ª etapa




DESPORTO OU ESPECTÁCULO (INDÚSTIA)?


Mal acabe de colocar isto no Blog, juro que corro a esconder-me na sub-cave do prédio, rezando a todos os santinhos que façam dela um “bunker” ao estilo daqueles que os israelitas têm para fugir dos mísseis dos inimigos (que estes nem bunkers têm).


Discute-se no Cyclolusitano (ou pretende-se discutir) o que há-de fazer-se para “limpar” o ciclismo da imagem negativa do “doping”. À imagem do que acontece em qualquer Órgão de Comunicação Social, continuam, no Cyclolusitano (e até dou isso de barato porque é um espaço onde se fala de ciclismo, e só de ciclismo) a tratar o “doping” de maneira totalmente diferente, sejam os casos relacionados com o ciclismo ou com qualquer outra das modalidades.

E vem-me à memória o que um dos meus grandes amigos, jornalista, homem com várias voltas feitas, entre algumas dezenas de outras corridas (e que só por acaso eu acabei por “substituir” nos escalonamentos d’A BOLA para o ciclismo) disse numa das conversas que tivemos.

Olhando, sem “palas” nos olhos, para a realidade dos nossos dias, será que faz algum sentido escamotear que as modalidades de Alta Competição deixaram de ser desporto puro, para se tornarem, primeiro, num espectáculo cujos principais artistas são pagos a peso de ouro, e logo depois numa Indústria?

Sejamos então honestos connosco próprios.
O DESPORTO, actividade lúdica com inegáveis proveitos em termos de saúde para os seus praticantes, aquele desporto que o barão Pierre de Coubertain resolveu – começando, nessa mesma altura, a matá-lo – reunir na recuperação dos Jogos Olímpicos da antiguidade, “semente” a partir da qual haveria de crescer mo desporto actual, ainda existe?

Será que a divisa «mens sans in corpore sano» ainda faz algum sentido?
Comecemos por aqui…
O que é que procuramos num ESPECTÁCULO desportivo?
(Repararam que não é NO DESPORTO?)

Reduzamos isto à sua unidade básica.
O que é que queremos ver quando vamos a um jogo de futebol, por exemplo. Não é OS NOSSOS ganhar? P’rás malvas com o desportivismo. Os NOSSOS ganham nem que seja para além da hora, num lance off-side e com a bola metida com a mão. QUEREMOS é que OS NOSSOS ganhem.

Não foi por acaso que escolhi o futebol como exemplo. Foi até por mais do que uma razão. E a primeira é mesmo a de que AQUILO, nos nossos dias, É UM ESPECTÁCULO, caro, com artistas caros e… que depende sobretudo dos resultados. Um pequeno passo, para saltarmos do ESPECTÁCULO para a INDÚSTRIA, onde se investem milhões com UM ÚNICO OBJECTIVO: recuperar o investimento. E isso só os resultados (os BONS resultados) conseguem.

Do futebol podemos passar ao basquete (atenção ao mui singular caso da NBA), ao andebol, à natação, ao atletismo… ao CICLISMO. Porque haveria de ser diferente?

O público, aficionado ou não, procura ESPECTÁCULO, os investidores não podem deixar de pensar em… INDÚSTRIA.

O desporto que o barão Pierre de Coubertain sonhou já não existe. Aliás, nos últimos anos “implodiu” mesmo. Desporto são as corridas de “jogging”, as bicicletas de montanha que pedalamos no jardim e, mesmo aí não vou ser eu a jurar que a ideia de Pierre de Coubertain não tenha sido adulterada.

Voltemos então atrás, para já só à parte do ESPECTÁCULO.
O que é que qualquer espectador quer quando se dispõe – pagando ou não – a assistir a um espectáculo? A sobreposição de palavras pode parecer redundante, mas querem é… ESPECTÁCULO.

Compra-se um bilhete para ver (rever) os Rolling Stones. O que é que se quer? Assistir a um grande ESPECTÁCULO. Os nossos preferidos são os Pink Floyd? Não muda nada. Queremos… ESPECTÁCULO. Não, o que gostamos mesmo é do belo canto. Compramos bilhetes para ver o Luciano Pavarotti. E o que é que queremos? Assistir a um grande ESPECTÁCULO.

E na Fórmula 1 é igual; e na EuroLiga de Basquetebol, a mesma coisa; na Liga dos Campeões, em futebol, idem, idem, aspas, aspas… até nos Jogos Olímpicos o que queremos ver é ESPECTÁCULO: recordes a serem batidos.

Porque é que no ciclismo insistem que não querem exactamente a mesma coisa? Porque se assume tantas vezes o papel de “virgem” assediada por maléfico violador?

Então não é ESPECTÁCULO o que se quer quando, deixando tudo para trás se fica em casa para ver as subidas do Mortirolo, do Alpe d’Huez, do Anglirú… da Senhora da Graça?

Não é sempre à espera de ver os campeões anunciados vergados sob o peso de um dia mau e, ao mesmo tempo, ver surgir novos campeões?

O Espectáculo constrói-se sempre de forma a agradar ao espectador. Por isso desde os dramaturgos da Grécia Antiga, passando por William Shakespeare, por Luís de Camões, até aos dias de hoje… os protagonistas tiveram pela frente tarefas IMPOSSÍVEIS de ultrapassar mas que eles… passaram. E foi essa “trama” que os tornou imorredouros. Preservou os seus nomes até hoje como grandes autores.

Como a “estória” do soldado de Maratona que correu mais de 42 km para dar a notícia da vitória conseguida pelos seus. Como os navegadores que “dobraram” (anote-se a analogia com VENCER) os cabos Bojador e da Boa Esperança.

A História conta-nos feitos só possíveis de terem sido vividos por personagens um tudo-nada além do… meramente humano.

Nos nossos dias as “estórias” contam-nos histórias diferentes mas que não deixam de ter, cada uma delas, um pouco das velhas “estórias”.

No período que, no século passado, marcou a nossa história e que ficará para sempre conhecido como o da Guerra-fria, as principais potências – que haviam imposto a si próprias o deixar de lado as armas convencionais – inventaram outros “campos de batalha”. E o DESPORTO foi um dos preferidos.

Desde 1936, em plenas Olimpíadas de Berlim, quando Jesse Owens “provou” a Hitler que um negro podia ser mais forte que a “superior” raça ariana, que a grande roda do desporto-muito-mais-que-desporto não parou de girar.

Esse meu amigo, por acaso, viveu na antiga RDA. Mas não era só a Alemanha de Leste que queria bater os seus irmão ocidentais. A ex-URSS “tinha” que ser superior aos Estados Unidos e estes superiores àquela.

E criaram-se campeões de laboratório,

E isso extravasou para todas as modalidades. Para todos os países.

O desporto transformou-se em “campo de batalha” onde, como é natural, uns e outros viveram brilhantes vitórias e humilhantes derrotas.
O DESPORTO deixou de ser o que era antes. Malgrado os Jogos Olímpicos que, na antiguidade grega mereciam uma trégua na guerra bélica mas que apenas transferiam para as pistas a mesma guerra entre povos.

Aligeirou-se, nos nossos tempos, essa carga bélica, mas jamais as grandes competições deixaram de ser um medir de forças entre as principais potências. E esse clima de “guerrilha” sem armas inflectiu para o interior dos próprios países.

As grandes competições não existiriam sem grandes clubes/atletas e estes sem que tivessem uma legião de seguidores cegos, tão cegos como os que queriam apenas ver derramado o sangue dos inimigos nos tradicionais campos de batalha.

E houve alguém que viu ali uma possibilidade de, da mesma maneira em que os romanos transformaram em espectáculo a morte de um dos gladiadores no Grande Circo de Roma – depois com “cópias” por todo o Império –, transformar essas rivalidades em espectáculo. Coisa que as pessoas não só queriam ver como pagavam para ver.

A sociedade evoluiu, mas o Homem não é muito diferente daquilo que sempre foi.

Os duelos de gladiadores mudaram de formato. São onze contra onze, num relvado campo de futebol; cinco contra cinco num pavilhão da NBA, um contra… todos, nas estradas por esse Mundo fora, montados numa bicicleta. Uns assumem abertamente a sua condição de espectáculo… outros vão tentando enganar todos. Melhor… os espectadores a quem esse espectáculo é dirigido, e para isso montado, recusam-se a olhá-lo como tal. Talvez porque não pagam bilhete. Mas não é isso que o faz ser menos espectáculo que os outros.

E quando se vai assistir a um espectáculo – estou a recuperar o que já antes escrevi – quer-se ver grandes actuações.

Alguém se preocupa com o que Mick Jager toma ou deixa de tomar para, aos sessenta e muitos anos se apresentar em palco com a vitalidade de um “miúdo” de 20?
Não! Querem é rever os Rolling Stones que sempre conheceram. Se possível, ainda melhores, que isso da idade… já diz o povo que o vinho quanto mais velho melhor.

Alguém se pôs já a pensar como é possível a estrelas da NBA, como Shak O’Neil, só como exemplo, “obrigadas” a actuar sempre ao mais alto nível, com jogos separados por 48 (às vezes só 24) horas, em locais tão distantes que obrigam as equipas a terem jactos privados que de outra maneira seria impossível ir de Nova Iorque a São Francisco em tempo útil, conseguem aparecer jogo após jogo, após jogo, após jogo… sempre como “man of the match”?

Como os Powell (ou Obikwelu) chegam a cada uma das provas em que participam e batem recordes atrás de recordes? E isto repete-se na natação e em todas as modalidades de Alta Competição? (Por esta altura já devem ter interiorizado que Alta Competição significa “Ipsis Verbis”… ESPECTÁCULO.)

Então, se ninguém se preocupa com o “como” é que aquelas estrelas/atletas se preparam para aparecerem todos os dias mais “frescos” do que no dia anterior… por que raio é que pretendem que no ciclismo seja diferente?

É um espectáculo como os outros e cobramos bem caro às estrelas de quem esperamos o máximo. Então… vemos um lado da moeda e recusamos liminarmente olhar para o outro?

Por ser a “nossa” modalidade preferida queremo-la (fechando os olhos a tudo) virginalmente limpa?
Fazemos como alguns pais que recusam ver os defeitos dos filhos mas apontam a dedo os defeitos dos filhos dos outros?

E se a pressão que cai sobre os atletas porque SÃO, DE FACTO, actores num espectáculo que o público não admite ter falas… isso potencia-se se, sendo completamente honestos connosco próprios aceitarmos que do espectáculo já passámos à fase seguinte. Hoje, o DESPORTO É UMA INDÚSTRIA.

Que move muito dinheiro, dinheiro que é investido por terceiros que não querem saber de “porquês”, querem é ver os seus investimentos aumentados, seja de que forma for. Ou com as receitas de bilheteira ou com o retorno publicitário que o espectáculo gere.

E exige-se mais aumentando o investimento que só tem um fito: conseguir mais receitas e mais retorno. E de cada vez que isto é conseguido, investe-se um pouco mais e exige-se um pouco mais. É a Lei do Mercado.»
Se tu não me dás o que quero, encontrarei quem dê…», e porque o dinheiro é necessário… a resposta tende a ser um pouco mais acima do esperado. Para que o novo investimento seja um pouco maior. E neste caso as exigências são também maiores… e porque o dinheiro faz falta…

Prosseguiríamos “Ad Eternun” neste Círculo Viciado…

Agora, o ESPECTÁCULO só existe porque há espectadores.
E serem estes, que, ao fim e ao cabo, são OS “RESPONSÁVEIS” pela existência de toda esta máquina trituradora a quererem ser mais papistas que o papa… isso é que não faz sentido.

Ou se aceita (cuidando dela) a “besta” que se criou…




P.S.: Adivinho naqueles que conseguiram ler tudo até aqui uma vontade irreprimível de me lapidarem até à morte, mas estes 10.800 caracteres posso resumí-los numa frase: Não esperem que o Desporto que temos na actualidade seja comparável ao mui infanto-juvenil "jogo-da-corda" praticado por dois grupos de escuteiros.

1 comentário:

Antonio Dias disse...

Manuel, tudo o que dizes tem razão de ser e foge dos padrões habituais da hipocrisia. Nisto estamos de acordo. O desporto é hoje concebido para o espectáculo total e nenhuma modalidade está fora do "circo"...

De todos os modos, mantendo a actual tendência do "show must go on", continuaremos a formar gerações de campeões e desportistas "drogados", no que constituiu, no meu ver, uma forma inaceitável de alienação do homem (e do seu corpo) a um "circo" sem regras. E como em todos os "circos", há os "palhaços", os "malabaristas", os "trapezistas", os "equilibristas", todos eles na sombra de bandos de canalhas como a rede Fuentes/Batres/Labarta/Saiz, ou os laboratórios Balco. Os métodos dos quais tivémos conhecimento são animalescos...

Hipocrisia não (nisto estamos em sintonia), mas espectáculo pelo espectáculo muito menos.

Já podes sair do "bunker".. :-)