quarta-feira, maio 09, 2007

521.ª etapa


(MAUS) SAPATEIROS INSISTEM
EM OPINAR PARA ALÉM DA... CHINELA

Primeira confissão: sinto-me confuso, em relação às últimas novidades sobre o ciclismo – sem bicicletas – que nos últimos dias reconquistou páginas nos diversos jornais. E, vá lá saber-se porquê, a coisa começou mal.

Dizendo, sem o dizer – ai as traduções dos serviços de agência são de tal modo deturpadas que, partindo do princípio que nada move ninguém, em particular, contra o ciclismo em si… não é só o ensino da matemática que está a falhar entre nós. E para se ser jornalista dever-se-ia provar, com diplomas, que se está minimamente qualificado para entender e, principalmente, interpretar, pelo menos, o inglês e o francês.

Dizia eu…
dizendo, sem o dizer, o CONI – Comité Olímpico Nacional Italiano – antecipou aquilo que, mais do que, sendo a verdade, era o que o seu desejo de protagonismo aspirava, que o corredor Ivan Basso “viria a reconhecer o seu envolvimento no caso da Operação Puerto”.

Bastou isso para se maquetarem páginas de jornal – em Portugal e não só – com textos de pré-acusação em relação ao vencedor da última edição do Giro.
Não vá o sapateiro além da chinela. É um dos mais populares adágios da nossa histórica sabedoria popular. Tão menosprezado por quem, no seu palanquinho, acha que sabe de tudo...

Vinte e quatro horas depois, em Conferência de Imprensa, o corredor italiano desmontou a pretensão do CONI. Confessou o que não pode ser desmentido – o seu nome consta nos “arquivos” do famigerado doutor Eufeminiano Fuentes mas logo a seguir jogou um trunfo que não pode ser rebatido. Nos últimos anos foi dos corredores mais controlados e a sua ficha desportiva está limpa.

Uma espécie de – e os mais novos não o compreenderão – “Sim, investi dinheiro na Dona Branca, mas não tirei disso quaisquer dividendos. Pelo menos ninguém o pode provar pelos meus extratatos bancários (que aqui, neste caso, são os controlos anti-doping) e o que nem sequer seria... ilegal. Ilegal era a actividade da provecta senhora.
Para os que se lembram… a julgada, e considerada culpada, foi a Dona Branca.

Quem lhe entregou as suas economias apenas… perdeu tudo.

Falta cultura geral – entre outras coisas – a quem se julga capaz de opinar sobre assuntos que não domina. Nem sequer tem uma ideia, o que é ainda mais grave pois não se abstêm de opinar.

O que, neste momento, está em causa, são mesmo as diferenças legal-incriminatórios, de país para país.

A Lei espanhola – em vigor à altura da Operação Puerto – era omissa no que respeita, não só à intenção mas mesmo em relação ao recurso a métodos, chamemos-lhe assim, anti-desportivos a que qualquer atleta possa ter recorrido. Dizendo-o e forma clara – para que até os não iniciados o percebam – o doping, em actividades desportivas (e em todas as outras nas quais, mais dia, menos dia, há-de vir a estar regulamentado) não era punível por qualquer Lei.

Mesmo em relação aos senhores Eufeminiano Fuentes e Manolo Saíz – isso não foi desmentido – que foram apanhados a trocar dinheiro (o segundo) por produtos que a sociedade (e não a Lei) rotulam de menos éticos, só poderiam, e eu escrevi isso na altura, ser acusados de atentado à saúde pública. Sendo, ainda assim, necessário que alguma entidade conseguisse provar aquilo. Que era um atentado à saúde pública.

Mas a Operação Puerto não deu em nada e não pode jamais ter consequências. O Direito da maioria dos países ocidentais é claro. Provas (reparem que eu nem escrevo eventuais provas) recolhidas por uma entidade, numa investigação própria, não podem ser usadas por segundos de forma a prejudicar terceiros.

A Operação Puerto foi mal montada e pior conduzida. E bastava ter lido os principais jornais espanhóis, na altura – recordo que, nesse mesmo momento, o Executivo espanhol se preparava para fazer aprovar um novo quadro jurídico – para o ter percebido de imediato.
À distância de um ano parece-me fácil de entender. Uma força policial quis mostrar serviço. Ignorando – é o que dá a entender – que os seus esforços não tinham enquadramento jurídico.

Mas já havia (naquela altura, porque, entretanto, a Lei espanhola actualizou-se) países cuja legislação estava um passinho à frente da espanhola.

Eu não sou formado em Direito e não tenho pretensões a, só pelo que leio, vir aqui esgrimir argumentos. Mas há coisas tão lineares que até eu percebo.
Se há quem não percebe, nem faz o mínimo esforço para o entender – porque “sangue” sempre ajudou a vender jornais – se aventura a transcrever tudo e qualquer coisa que as agências noticiosas colocam em linha… isso a mim não me diz respeito.

Eu não o faria.

À luz da legislação espanhola – à altura da Operação Puerto, repito – mesmo que as autoridades judiciais (o que não aconteceu) tivessem posto nomes às dezenas de nicknames que constavam das fichas do doutros Eufiminiano Fuentes, nenhuma consequência daí adviria porque o “crime” não estava previsto no Código Penal Espanhol. Mas porque é que insistem em ignorar isto?

E aqui questiono a legalidade da transmissão desses dados a terceiros. Como, por exemplo, o Ministério Público alemão. Como é que este… refraseando: assente em que espécie de protocolo é que uma informação vazia de ónus penal, no país onde terá sido detectada, pode ser facultada a outros que, aqui sim, com uma Lei mais avançada, pode, a partir daqueles dados inválidos à nascença, serem usados contra terceiros?

Porque se quer, a todo o custo, "verter" sangue. E será este sangue - e quanto mais sonante for o nome envolvido melhor - que vingará a falta de engenho de todos os intervenientes. A polícia espanhola que não soube agir, e as autoridades desportivas competentes que, neste caso concreto - ai não sabem de nada? - ficaram sentadas à espera que outros fizesse o trabalho sujo. Mas agora querem tirar diviendos do que foi apurado. Mesmo que não o possam fazer. Por Lei não podem.

Dou um exemplo, daqueles parvos, como eu tantas vezes gosto de lhes chamar. Numa hipotética viagem à Holanda, numa qualquer ruas de Amesterdão, eu compro, para consumo próprio, uma dose de cannabis. Coisa perfeitamente legal naquele país. Pode algum Promotor Público, em Portugal, e na posse de provas inequívocas de que eu comprei cannabis – proíbida em Portugal – prender-me e tentar condenar-me mal passe a fronteira de regresso ao meu país?
Claro que não!... Então os mais lerdos que me digam directamente o que é que não perceberam no que atrás ficou escrito.

Recupero, para ajuda desses mesmo, os mais lerdos, a questão fulcral neste imbróglio todo. À data da Operação Puerto, em Espanha não havia legislação que previsse sanções a quem recorresse a meios ilícitos para melhorar o seu desempenho desportivo.

Mas voltemos ao caso do Ivan Basso (e ao do Michelle Scarponni que, para mim, são em tudo idênticos).

Não vão ser as autoridades, nem judiciais, nem policiais espanholas a revelar, mais dia, menos dia, os nomes de todos os implicados. Vão ser os media. Alguém, desinteressadamente, vai permitir, estou certo, a conveniente fuga de informação. (QUEREM APOSTAR QUE É O DIÁRIO "AS"?)

E em Itália a prática do recurso aos tais métodos ilícitos para o melhoramento do desempenho desportivo é punível por Lei.

Cientes, porque estas coisas, e por muito que custe aos media – que invariavelmente chegam atrasados e servem apenas de caixa de ressonância – já se sabe, bem mais atrás, ao nível dos bastidores, que algo está para rebentar, Ivan Basso e Scarponni já saberão que um destes dias – a aproximação do início do Giro potencia essa possibilidade – a lista, pelo menos dos italianos implicados, sairá a público.

E que fazem?

Claro… o mea culpa, antes da condenação virtual pelos media e adeptos.

Quais os riscos? À luz da legislação italiana são culpados mas, e porque nunca as autoridades desportivas responsáveis os apanharam em flagrante, isso serve de atenuante. Em vez dos dois anos de castigo apanharão 12 meses e já só faltam sete para o início da nova temporada na qual aparecerão completamente limpos.

Só a falta de vontade de reflectir sobre todos estes dados justifica as páginas gastas nos jornais numa coisa que, vamos esperar… mas eu tenho a certeza de que estou certo, não passará de um fait divers.

Curiosamente, há dois dias recebi um comunicado – que as redacções de todos os desportivos portugueses também receberam (eu vi a quem foi endereçado o comunicado) – da Associação dos Corredores Profissionais Italianos que, em defesa dos seus associados, se manifesta, e com toda a razão, contra a diferença de tratamento, neste caso dos italianos, em relação a corredores também presumivelmente implicados mas que, porque nos seus países – estamos a referir-nos aos espanhóis, não há como escondê-lo – as leis são diferentes, aí estão, no pelotão, correndo e ganhando corridas.

Que culpa têm os corredores espanhóis?

Nenhuma.

Legalmente ninguém os pode impedir de correr porque – na falta da tal Lei nacional – as autoridades desportivas com a obrigação de zelarem pela verdade… desportiva, não lhes podem pegar.

E então? Pagam só os italianos?
O caso de Ullrich é diferente e bem mais complexo.

Insurge-se contra isso a Associação dos Corredores Profissionais Italianos… como poderia ser o caso da portuguesa, porque a nossa Lei ainda não foi ratificada e estamos em igualdade de circunstâncias com os espanhóis.

O seu comunicado foi distribuído pelas três redacções dos três jornais desportivos. O que é que se leu?
Eu sei… nada!

Mas num caso que é UM SÓ… e por mera falta de objectividade, pequenos Torquemadas apressaram-se a acender as fogueiras e festejaram, de véspera, a queima dos impuros. No dia seguinte vinham as notícias de que – falo de Basso – sim senhor… (e ele lá sabe porque teve que se antecipar ao que, sabe-se lá, aí vem) há bolsas de sangue com o seu nome no espólio do famigerado Fuentes mas, adiantou, e a isso ninguém poderá contrapor seja o que for, foi sujeito a dezenas de controlos anti-doping e nunca nenhum deu positivo.

E agora?
Houve uma altura em que o direito ao bom-nome – de quem quer que fosse – valia, quando posto em causa, inclementes penas a quem dele se tivesse aproveitado.

Mas hoje em dia é o que vemos.

E já não se espera que o corpo esteja por terra, sangrante, para se lambuzarem os dedos com o seu sangue. Faz-se a festa de véspera. Sem esconder a hedionda (e sádica) propensão para… artigos que, esprimidos… só visam um propósito: derramar sangue.

Sei que tenho, cada vez mais indelevelmente associado ao meu nome, um estigma. Sou pelo ciclismo. Não me apanhem a escrever artigos infantilmente desmontáveis, não me acusem de escrever sem, antes disso, tentar – pelo menos tentar – informar-me o mais rigorosamente possível, e não será por aí que deixarei de dormir de consciência tranquila.

Sem nunca ter tido pretensões a qualquer tipo de poder, não ignoro que de facto usufruo de um que me é dado pela profissão que abracei por paixão. Tenho, todos os dias, uma página em branco onde posso escrever o que me apetecer. Pior do que isso, posso, sem medir as consequências, apenas transcrever o que outros escreveram (mesmo que não resista à vaidade de lá apôr o meu nome) mas, o facto de amar demais a minha profissão de Jornalista servirá sempre de travão na hora de usar da minha premissa de ter um espaço à minha disposição para acusar, levianamente, seja quem for.

(E não abdico da minha opinião de que, noutros casos – envolvendo outras modalidades – estes casos serem, sistematicamente minimizados.)

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