sábado, maio 12, 2007

536.ª etapa


MAUS EXEMPLOS E OUTRAS CONSIDERAÇÕES
SOBRE UMA SOCIEDADE QUE TRESANDA A PODRE

A única coisa que verdadeiramente admiro no chamado campeão da Liberdade, que são os Estados Unidos da América, é a possibilidade de cada um se expressar livremente. É verdade que na velha Londres, no vestuto Hyde Park, o speaker’s corner onde, desde 1885, qualquer um pode subir ao palanque e botar discurso, há-de ser o mais democrático dos acres quadrados de todo o Mundo, ainda assim, e em termos colectivos, os Estados Unidos consagram desde há muito essa liberdade na própria constituição.

Por isso não ponho sequer em dúvida a denúncia vinda a público de que a Agência norte-Americana para a luta contra o Doping (USADA) tenha proposto a Floyd Landis que denunciasse qualquer coisa por onde se pudesse pegar na figura de Lance Armstrong, tendo isso como contrapartida a atenuação de eventuais futuras penalizações ao corredor amish, vencedor por confirmar do último Tour.

Se mantém nas veias algum do sangue que o fez nascer amish, Landis calar-se-á.

Depois, e se durante 10 meses clamou a sua inocência, não iria – digo eu – fraquejar agora, caindo na armadilha, o que seria quase a mesma coisa que confessar o que até agora – malgrado as várias análises e contra-análises – negou.

Que credibilidade tem, seja que autoridade fôr, para acusar, seja quem fôr, e, passados dez meses, ainda o não ter conseguido provar?
Aqui, em Portugal e desde 1938 a 1975 tivemos uma, que começou por chamar-se PIDE e depois se travestiu em DGS.

Sei, pelo que li, porque me interesso pela História recente do meu país, que esta era uma das habilidades mais utilizadas por essa famigerada organização. Denuncias meia dúzia de camaradas e a gente perdoa-te o crime de ousares teres convicções.

Eu, a partir deste momento e seja qual fôr o veredicto final, em relação a Floyd Landis, vou ficar sempre desconfiado.

Mas, e aqui, enquanto – e assumo-o – analista do fenómeno ciclismo, desqualifico desde já toda e qualquer que seja a tal decisão final.
Quando, quem tem responsabilidades reais na luta contra o flagelo do doping, e perante um, alegadamente, suspeito, melhor não acha para atingir os seus meios do que propôr uma troca de favores… está tudo dito.

Se houvesse, de facto, provas concretas, paupáveis, plausíveis, contra Landis, há muito que a decisão teria sido tomada. CULPADO!

Sem remissão.

Se ainda não foram capazes de o provar… já o não serão.
E, se por acaso isso vier a acontecer, alguém, de boa fé, vai acreditar?

E espero, ansiosamente, pela véspera do arranque do Tour deste ano para ver o que a ASO vai fazer. Assume-se ou claudica perante as autoridades responsáveis pela luta contra o doping?

E eu que pensava que só em Portugal é que era possível alguém passar três anos preso sem culpa formada.

Mas depois vem outra coisa que me magoa profundamente enquanto cidadão. E jornalista.
Esta notícia só veio num dos jornais desportivos.

E só falo nos desportivos porque são os que compro diariamente.

A velha A BOLA não deixaria, cumprindo um caminho que trilhou à custa de tantas dificuldades – chegou a cumprir castigo e ficar impossibilitada de sair –, de se centrar neste caso. Eu sou funcionário da casa, orgulho-me muito de o ser, tanto que sofro com estas situações.
Mas... nem uma linha.

Cândido de Oliveira esteve no Tarrafal porque, enquanto alto funcionário dos CTT, fez uso dessa sua posição para ajudar os Aliados na II Grande Guerra Mundial. Os bons, foi o que se aceitou sem pestanejar, na altura, embora tenham sido esses mesmos que depois viriam a gerar os actuais Blair e Bush que, incapazes de se oporem ao poderoso cartel do fabrico de armamento, atiraram os respectivos países – e os filhos (das classes inferiores, claro) – para uma guerra sem saída.

Os jornais estadunidenses – a América é muito grande; a América do Norte compreende também o grande (enorme, em superfície) Canadá e o México, por isso, o nome Estados Unidos da América já pressupõe, por si, uma criticável predominância sobre territórios que não juraram a sua bandeira –, dizia eu, os jornais estadunidenses denunciaram esta proposta aberrante e que – será preciso mais? – retiram à USADA o último átomo de credibilidade.

Existem, e não é de agora, problemas com o ciclismo? Claro que existem. Como existirão com todas as outras modalidades. Até no desporto para deficientes – que deveria ser uma forma de reabilitação social para quem perdeu terreno aos olhos de um Mundo que se julga perfeito – sofre desse mal.

Continuo, contudo, a ler, dia-a-dia, quase todos os dias, textos de quem nada percebe de ciclismo a querer também – por vaidade, só por vaidade – mandar a sua pazada de terra sobre a tumba de algo que ainda nem sequer morreu, muito menos pode estar a ser enterrado.

Reconheça-se – o mal é nosso, dos jornalistas de ciclismo; devíamos impor-nos, mas não faltam os exemplos de quem se venda por um punhado de lentilhas – que de ciclismo só deve falar e escrever quem sabe alguma coisa de ciclismo. Quem vive de perto, porque sofre com a agonia da modalidade que ama, a sua realidade.

E que seja capaz de, com o mínimo de lucidez, separar o trigo do joio.

Há dois ou três artigos atrás escrevi sobre a hipócrisia da associação de equipas que agora resolve passar para o lado dos acusadores, num caso que aparentemente, e é só aparentemente, envolve alguns – muitos! demais, mesmo – corredores.

Como leio opiniões hipócritas de quem já está de pavio aceso para atiçar a fogueira onde queimar os culpados, mas se regozija com os traçados desumanos das grandes corridas. Os mesmo que aplaudem as diferenças de cotas de 22% numa montanha, bramem depois contra presumíveis batoteiros.

No meio de tudo isto, estão as autoridades.
As desportivas, definitivamente coniventes com todo o sistema, e as judiciais que não são capazes de decidirem em tempo real as supostas acusações.
Será porque estas não se sustentam por si?

E que dizer, fechando o círculo, de quem, mesmo não conseguindo acusar um sujeito lhe promete benesses se este as ajudar a apanhar um terceiro?

E por mais nomes que me chamem, eu insisto: as leis em vigor na maior parte do mundo Ocidental – o auto-denominado primeiro mundo – já dão, às milhentas autoridades que devem zelar pela verdade desportiva e (embora me soe a eufemismo) saúde pública, dentro do círculo dos desportistas profissionais, onde se enquadram os corredores de ciclismo, uma liberdade que, às vezes, a mim, me parecem raiar o atentatório à própria liberdade individual do cidadão, então estas que façam o seu trabalho.

Já não chegam os controlos em competição. Alargou-se isso aos controlos fora de competição. Obriga-se cidadãos livres a comunicarem que vão passar um fim-de-semana fora da sua habitual residência, porque também têm direito a férias, porque fazem anos de casados, porque… lhes apetece e ninguém teria nada a ver com isso, e agora já oferecem perdões a quem denuncie um companheiro.

Não fosse o caso demasiado sério e eu estaria a rir-me.
Mas é esta a forma de funcionar deste novo Mundo.

Aliás, mesmo aqui em Portugal convida-se trabalhadores a denunciar colegas menos diligentes; obriga-se profissionais da restauração, por exemplo, a denunciar um fumador que puxe de um cigarro no seu estabelecimento…
Pede-se a profissionais que classifiquem a prestação de colegas, mesmo os que estão no mesmo ranking, em termos de hierarquia.

Fico por aqui porque me veio à memória um velho ditado chinês.
“Se já estás num buraco… pára de escavar.”

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