quarta-feira, maio 16, 2007

541.ª etapa


HONI SOIT QUI MAL Y PENSE

A meio da etapa de hoje, no Giro, aconteceu uma queda colectiva que envolveu bem meio pelotão. A estrada parecia barrada de manteiga. Os corredores caíam aqui e “escorregavam” pelo alcatrão dez, quinze metros. Até que iam esbarrar com quem já estava caído mais à frente. As bicicletas também escorregavam e iam bater contra os corpos já doridos, camisolas rasgadas, mazelas à vista.

Os corredores que, na cabeça do mesmo pelotão, haviam escapado à queda, desaceleraram visivelmente. À espera que os companheiros de profissão recuperassem. Se levantassem, voltassem a montar na máquina e voltassem a dar aos pedais. Mesmo que alguns deles apresentassem sinais de evidentes lesões. Estou a falar do caso do nosso bem conhecido Joan Horrach que na perna direita, mesmo na zona dos calções tinha um hematoma – sem exageros – do tamanho de uma bola de andebol.
Foi ligado em andamento e retomou a corrida. É a sua profissão.

No ciclismo não há paragens de jogo para se assistirem falsas vítimas de faltas que não existiram, e que todos podemos rever nas múltiplas repetições que a TV mostra. Ao contrário do Circo, onde o Palhaço Rico nunca tropeça – isso é só para o Pobre, que também é o que TEM de levar as bofetadas – os milionários do pontapé na bola não têm pejo (ainda sabendo que a televisão os desmascarará) em simularem lesões que, de facto, não têm. Sem por isso serem penalizados, por exemplo, pela CS. Julgam-nos até como “inteligentes” na forma como “arrancaram” determinada grande penalidade. Como se isso fizesse parte das regras do jogo. O ser “inteligente” de forma a enganarem árbitro e espectadores. E penalizarem colegas de profissão. Com a conivência de quem devia ser imparcial.

No ciclismo, ninguém se atira para o chão para ganhar tempo. Antes pelo contrário. A primeira preocupação dos que são vítimas de queda é a de se levantarem, e montarem as suas bicicletas e tentarem não perder demasiado terreno. O tratamento médico virá depois, em pleno andamento.

Mas como qualquer um pode ser vítima de queda, aquilo a que há algumas horas pude assistir não é caso isolado. Os da frente levantaram o pé. Esperaram que os companheiros de profissão voltassem a estar em condições de, de igual para igual (se isso fosse possível), reintegrarem a corrida.

É isto que faz do Ciclismo uma modalidade diferente. Contudo, infelizmente, para se perceber isto é preciso – pelo menos – compreender estes códigos de ética escritos em lado nenhum.

Li hoje – e para que não subsistam quaisquer résteas de dúvidas nem pensem que estou a beliscar seja quem for, acrescento que assino um serviço fornecido por uma empresa espanhola que, duas vezes por dia, me põe na minha caixa de correio um clip completo de (quase tudo) o que a imprensa espanhola, francesa, italiana e alemã publicam sobre ciclismo e “essa” notícia vinha, de facto, em vários OCS, de mais do que um país –, li hoje, recupero, que Ivan Basso terá deixado de querer colaborar com o CONI (e continuo sem perceber que órgão, num comité olímpico nacional, tem poderes para assumir o papel de juíz) porque, cito de memória, “a sua integridade física ficava em causa”, acrescentando-se que, volto a citar: “numa corrida, qualquer um pode ir parar a uma valeta (sic)”.

Será que é mesmo esta a ideia que os não iniciados – que são a maioria, é bom de ver – têm do Ciclismo? Dos Corredores profissionais? Serão eles mesmo um bando de mafiosos que, na primeira oportunidade, aproveitam uma descida louca, uma curva a jeito e… atiram os rivais ribanceira abaixo? Será?

Pessoas que nunca viram uma corrida de bicicletas, mesmo até algumas que já viram passar os “ciclistas” acreditarão nisto ou não? Podem acreditar. Podem sim senhor.

Já aconteceu? Não. Nunca. Garanto que nunca.

Mas registo que a classe dos Corredores profissionais de ciclismo – e aqui cito, com um enorme carinho, o que uma querida amiga (beijinho grande E.) costuma dizer-me, lá na redacção – deixaram de ser “uns drogaditos” e evoluiram para a classe dos “assassinos”.

Os milionários que “inteligentemente” são capazes de “cavar” uma grande penalidade, não merecem reparo porque, afinal de contas, são o nosso espelho. Capazes de recorrer a pequenos “truques”, quer seja para viajar de comboio sem bilhete, ou tentar entrar num Bar, sem pagar o devido consumo mínimo. Somos assim. Principalmente os portugueses são assim. E são-no em todos os patamares da sociedade. Sendo que do teen-ager que viaja no comboio sem bilhete, ao já “espigadote” que quer entrar à borla num Bar, passando por quem está disponível para atropelar seja quem for com o único intuito de subir ao patamar mais alto, somos uma sociedade de batoteiros. Mas ainda há quem faça questão de se reger pelo legal e moralmente permitido. São os Palhaços Pobres. Os que, por querer ou levados a isso, tropeçam a cada dois passos. E, principalmente, os que levam as bofetadas.

Haverá traduções difíceis de fazer. Do italiano para o alemão; do inglês para o espanhol; do francês para o português… haverá. Mas não me dêem a ler que um Corredor profissional de ciclismo receia que um colega de profissão o atire ribanceira abaixo.

E quem viu, esta tarde, a forma como o pelotão se portou, num momento em que a maioria dos seus colegas rasgava as carnes no asfalto, não poderá jamais acreditar numa coisa dessas.

Honi soit qui mal y pense!

Fotos: Cyclolusitano/António Costa

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