sexta-feira, julho 13, 2007

Comité Olímpico Internacional

Hoje acordei um ligeiramente pessimista. Certas notícias publicadas na imprensa portuguesa esta manhã são capazes de ter ajudado a piorar o caso. Por isso, este é, assim mesmo, um post pessimista, muito pessimista.
Ontem tinha prometido algumas notas sobre um outro caso de doping que marcou os últimos tempos. Mas, como ontem reunia a comissão disciplinar da Federação Austríaca de Esqui (ÖSV), achei por bem esperar para ver. E valeu a pena... sempre me ri mais um bocado. No ciclismo a "Operación Puerto" arrasta-se desde 2006, no esqui de fundo há um caso que vem desde o início de 2002. Cinco anos, dois escândalos olímpicos e muita discussão pública depois, parece ter sido encontrada a solução mágica para (quase) todos os males: uma "bula olímpica"!
E tudo começou de forma mais ou menos inocente... A 24 de Fevereiro de 2002, a 19.a edição dos Jogos Olímpicos de Inverno (Salt Lake City) foi encerrada. Terminada a festa, fizeram-se as malas e cada um voltou para as suas casas. Infelizmente para alguns, confirmou-se o que todos os que viajam regularmente sabem: na pressa de sairmos de casa, de vez em quando, lá acontece esquecermo-nos de algo. E foi exactamente isso que aconteceu a vários elementos da equipa austríaca de esqui de fundo. Os pobres coitados esqueceram-se não de apagar a luz ou de trancar a porta, mas pura e simplesmente de deitar fora o saco do lixo. Chato foi que nesse lixo estavam sacos de sangue vazios e diversos aparelhos médicos. Como castigo por esse esquecimento, os austríacos viram o Comité Olímpico Internacional (COI) abrir uma investigação sobre esse caso, que viria a culminar com o anúncio - a 26 de Maio - da desclassificação de 2 atletas (Marc Mayer e Achim Walcher), por recurso a práticas proibidas (ter-lhes-ia sido tirado sangue que, depois de tratado com, entre outras coisas, raios UV, foi reutilizado) e da suspensão do alemão Volker Müller (alegado inventor do método) e do austríaco Walter Mayer (director desportivo da ÖSV) dos JO de 2006 e 2010. Christian Hoffmann e Michail Botwinow (medalhas de prata e bronze na prova de 30 Km... uma das três ganhas por Mühlegg, que acabou por ter que devolver todas as medalhas, quando também foi apanhado nas malhas do doping), entre outros, não foram sancionados por falta de provas.
Quase um ano depois da investigação do COI (a 12 de Maio de 2003), a Federação Internacional de Esqui (FIS) suspendeu Marc Mayer (que é filho de Walter Mayer) e Achim Walcher por dois anos. Walter Mayer foi irradiado e, em Novembro, avançou com queixas em tribunal contra a FIS e a ÖSV (que o despediu após tomar conhecimento do castigo aplicado pela FIS). Estes processos resultaram no reconhecimento pelo tribunal de Innsbruck (a 23 de Fevereiro de 2004) do seu direito ao exercício das suas funções de treinador da Federação Austríaca, na redução do castigo imposto pela Federação Internacional (para uma pena de 10 anos, decisão tomada a 13 de Feveiro de 2005) e numa indemnização financeira decretada pelo Tribunal de Trabalho de Innsbruck (a 26 de Janeiro de 2006), que ordenou também a redução da pena de suspensão. Uma semana antes do início dos Jogos Olímpicos de Turim - e apesar de estar suspenso até 2010 -, Walter Mayer tornou público que estaria presente nos Jogos... a título particular.
Ao início da noite de 18 de Fevereiro, a polícia italiana levou a cabo buscas nas residências ocupadas por biatletas e esquiadores de fundo austríacos. A busca terá sido autorizada pelo Tribunal de Turim com base em relatórios de inspectores da WADA (que, em Janeiro, teriam encontrado aparelhos médicos destinados a práticas proibidas, durante uma visita surpresa à pensão de Mayer). Dez atletas foram levados até Sestriere para serem submetidos a controlos anti-doping. Walter Mayer conseguiu fugir da polícia e atravessar a fronteira austro-italiana. Ainda nessa noite - e com medo de serem presos ao abrigo da dura lei italiana -, os biatletas Wolfgang Perner e Wolfgang Rottmann (apanhado com frascos que continham Humanalbumin... e que atirou pela janela, quando a polícia entrou no seu quarto, ignorando que também havia Carabinieri do lado de fora...) resolveram abandonar o aldeamento olímpico e regressar a casa. No dia seguinte, a polícia austríaca encontrou Walter Mayer a dormir dentro do seu carro, na região de Kärnten. Ao ser abordado por um agente, Mayer fugiu, mas foi apanhado numa barricada. Acabou preso e condenado pelo Tribunal de Klagenfurt.
No dia 22 de Fevereiro, a ÖSV tornou públicas as suspensões de Emil Hoch (treinador de esqui de fundo) e dos biatletas Perner e Rottmann. Os Comités Olímpicos Austríaco e Internacional criaram comissões de investigação e três dias depois dão a conhecer os resultados dos testes feitos aos atletas austríacos na noite do dia 18: todos negativos. Dois meses e meio mais tarde, a ÖSV suspendeu o esquiador Johannes Eder (devido a infusões proibidas) por um ano.
Nos meses seguintes, ouviu-se de tudo... vindo de todos os lados. E, a certa altura, deu a impressão que se conseguiria deixar cair o assunto no esquecimento. Algumas vozes ainda murmuravam, mas a mui propagandeada crise desportiva numa outra disciplina (o esqui alpino... a jóia da coroa austríaca) absorveu todas as atenções. Até que, em Abril, finda a época de esqui, o COI reapareceu. Sobre este reaparecimento já muito se especulou - há até quem tenha escrito com todas as letras que foi obra dos alemães (numa questão que envolve candidaturas à organização de futuras edições dos JO).
A verdade é que o COI voltou à carga e deliberou a irradiação de seis austríacos. Por entre muitas questões legais e burocráticas (incluindo o recurso de quatro atletas ao TAS, ainda por decidir), cedo ficou claro que a coisa dificilmente ficaria assim. E foi nessa altura que Peter Schröcksnadel deitou tudo a perder...
Para quem não sabe, Peter Schröcksnadel é o presidente da ÖSV (e consta que o melhor presidente que a instituição conheceu desde...) e a ÖSV é a mais organizada, poderosa e rica federação desportiva da Áustria! Nenhuma outra chega sequer perto do prestígio e dos resultados da ÖSV: o "deus do esqui" (Hermann Maier) é austríaco, os melhores treinadores do mundo são austríacos, as melhores equipas são austríacas, as provas mais carismáticas da Taça do Mundo de várias disciplinas têm lugar no país dos Alpes, as melhores marcas de material para esqui são... exacto... são também elas austríacas. É muita coisa junta e, por isso, tudo o que envolve a modalidade toca os austríacos de forma muito peculiar. Sabendo da sua enorme popularidade e do apoio generalizado com que conta, Schröcksnadel acabou por não resistir a sentir-se como o Leonardo DiCaprio numa famosa cena no filme Titanic e, vai daí, subiu ao alto do seu púlpito para anunciar aos quatro ventos que ele é que é o rei do esqui. Os seus súbitos exultaram-no e deixaram-se levar na onda dos que diziam que, afinal, ninguém tinha feito nada de mal e que o COI só estava a perseguir os austríacos de forma tão feroz porque a Áustria é um país pequeno e sem peso internacional. Exemplos disso mesmo não faltavam, a começar pelo ciclismo alemão (isto ainda antes da abertura do confissionário). E o que é que o COI tinha feito em relação ao ciclismo? Pois...
No meio disto tudo, chegou a parecer irrelevante o facto do sr. Schröcksnadel ser não só presidente da dita federação, mas também vice-presidente do Comité Olímpico Austríaco (ÖOC). Parecia, mas não era. E foi por aí que o COI pegou. É que até parece aceitável que um qualquer agente federativo venha dizer que o COI não tem nada que andar por aí a irradiar austríacos, que as penas serão muito mais leves (nalguns casos, inexistentes), que o facto de terem sido encontradas substâncias dopantes debaixo da cama de alguns atletas não indicia que estas lhes pertençam ou que tenham sido por eles utilizadas e que a sua federação não tem nada a ver com a presença de um elemento suspenso em áreas de acesso restrito que lhe estavam reservadas (ah, pois! ainda ninguém conseguiu explicar a presença de Mayer dentro do "quartel-general" austríaco). Mas parece que deixa de o ser no momento em que quem "bota faladura" faz parte de um comité olímpico (sim... esses mesmos que servem para defender e espalhar os valores olímpicos reinstituidos pelo barão Pierre de Coubertain no final do século XIX). E o que é que o COI resolveu fazer? Fácil... mostrar que, afinal, quem manda são eles.
Para demonstrar o seu poder de forma simples e eficaz, o COI fez saber nos idos de Maio que estava a equacionar a suspensão do ÖOC por um período que poderia chegar aos 16 anos. Traduzindo, a Áustria não poderia participar em JO (de Verão e de Inverno) para aí até 2024. Foi o fim do mundo em cuecas!!! Em Viena, clamou-se por piedade. Afinal, questionou-se, que justiça era essa que castigava centenas de inocentes que nada tinham a ver com as ovelhas negras (não seriam vacas?) que pastavam lá pelos glaciares do Tirol? Dias depois, o COI - qual rei piedoso - concedeu uma espécie de "bula dourada olímpica" aos austríacos: eles pagavam (1 milhão de dólares), livravam-se de uma dúzia de indesejados e, em contrapartida, escusavam de cancelar os voos para Pequim. E assim foi: a 29 de Maio, o ÖOC reuniu para assistir à entrega do pedido de demissão de Schröcksnadel do seu cargo de vice-presidente, para irradiar 13 elementos da ÖSV de toda e qualquer presença em JO futuros e para deliberar que a multa seria paga por quem a devia ter evitado - a ÖSV.
Numa qualquer história da Disney, este seria o final feliz por que todos ansiavam. Mas a felicidade eterna só é conhecida nos contos e também não devemos ver nisto o fim. Porque a história está, como todos sabemos, sempre muito longe do final...
Ontem foram anunciados - entre várias anedotas - mais alguns castigos. Existem também ainda algumas decisões judiciais pendentes. Mas o que nós não podemos ignorar é que todo este processo abriu um precedente. Até aqui, o COI tinha sido muito liberal (chegando mesmo a aceitar a participação em JO de países envolvidos em conflitos armados... que isto dos valores olímpicos já deu o que tinha a dar), mas agora assumiu uma posição de força e só lhe restam duas opções: ou faz deste caso uma excepção (correndo o óbvio risco de perder a face e dar azo a mais especulações) ou segue por um caminho perigoso, que o poderá levar a entrar em rota de colisão com alguns dos seus membros mais influentes.
E o meu pessimismo faz-me equacionar um outro cenário, que prefiro considerar impossível. É que a tomada de posição do Governo alemão (ao ameaçar retirar o seu apoio aos Campeonatos do Mundo de Estugarda) e os permanentes escândalos de doping (que deixaram de aparecer como acções individuais de atletas que esporadicamente eram apanhados) não deixa augurar nada de bom. E há tanta gente capaz de vender a alma ao diabo por um lugar no Olimpo...
Por isso, apenas me resta acrescentar um conselho: tenham muito cuidado com o vosso lixo... E, já agora, peço desculpa pela extensão do artigo e pela extensiva referência a uma outra modalidade.

1 comentário:

mzmadeira disse...

Antes pelo contrário S., é mais uma excelente contribuição para que alguns (e não são tão poucos quanto isso) percebam, de uma vez por todas, que existe doping para além do Ciclismo.
Eu tenha falado disso, dentro das minhas limitações, no que respeita à falta (ou à capacidade de fundamentação) de dados concretos.
E como me ficava pelo trivial "mas e o sky de fundo? mas e o altetismo? e mais uma série de "mas"... facilmente me rebatem e acusam de querer "mascarar" o que vai pelo Ciclismo com o que se passará (passa, de certeza que passa) em muitas outras modalidades.

Mas, mais ou menos bem explicado, o que sempre quis dizer é que não faz sentido que se apertem as malhas, se cerque o ciclismo, se peça lacinantemente que se puna, irradie (e outras coisas que nem têm coragem de propor) corredores, como se o "cancro" morasse apenas nesta modalidade.

O problema do doping não é um problema exclusivo do Ciclismo! Nunca foi. E o que faz falta é uma política generalizada e abrangente, olhando todas as modalidades de forma igual, com actuações iguais em todos elas e que produzam resultados para que a Comunicação Social inverta a actual tendência pois o que está a acontecer é que, perante um tratamento desigual, em relação às outras modalidades, QUASE TUDO de MAU o que vem a público diz respeito ao Ciclismo.

O meu bairro está sujo. Toda a gente manda o lixo para a rua e há quem ache que fazendo-me uma marcação em cima, controlando o meu caixote do lixo e, em última instância, correndo comigo do bairro, o bairro fica limpo.

PS: Claro que o meu bairro e a minha rua estão limpinhos. Era apenas uma parábola.
O "meu bairro" é o Desporto; "Eu" sou o Ciclismo.